quinta-feira, 30 de julho de 2015

Leões e dentistas

Cecil não era uma pessoa, só tinha nome de americano, embora fosse natural de África e residente no Zimbabué. Walter também tem nome americano e dizem que é um dentista. Não se especifica se é ou não pessoa, mas sendo dentista, poderá ser um pressuposto. Cecil era conhecido, famoso e admirado em vida, Walter é conhecido, famoso e odiado na morte de Cecil. Tudo devido às redes sociais.
Walter veio agora fazer um comunicado. Por boas razões. As contas online da sua clínica de dentista no Twitter e no Facebook terão sido invadidas por insultos, quando foi divulgada a sua participação na carnificina. Comentários desagradáveis e ofensivos são piores que cáries em dentes da frente do próprio estomatologista e não contribuem para a saúde do negócio em geral e de uma clínica em particular. 
Veio dar explicações, na medida do possível explicativas, sobre o inexplicável. É inocente. Por várias razões. A primeira é que confiou nos mauzões lá de África que lhe disseram que era tudo muito legal e pagou uns trocos, cerca de 50.000 euros, mas em dólares, a esses mesmos mauzões, acreditando que eram bons. Não disse, mas provavelmente irá dizer, mais dia menos dia, que o fez com o principal propósito de ajudar as vidinhas desses cidadãos pobres e contribuir para o PIB, bem como para a economia, a demografia, a geografia, a cultura e a preservação da vida selvagem de um pais necessitado. A atestar a legalidade de tudo e a seriedade da operação está o facto de terem atraído o leão para fora da reserva, criando um rasto que sabiam que o animal seguiria. É má vontade considerar que não se está perante um escrupuloso cumprimento das leis. É proibido caçar dentro das reservas. Só foi aborrecido, porque demorou imenso tempo, 40 horas, quando se o leão tivesse colaborado, ou a legislação não empatasse, tudo se despachava muito mais depressa. A legalidade tem destas coisas, cria entraves que podem levar o seu tempo a ser ultrapassados.    
Outra razão é que não sabia que o leão era conhecido. Muito menos, que era conhecido no ciberespaço. Esta, sim, é uma razão de peso. Se Walter sonhasse a chatice que iria ter, teria apontado a um leão outline, ciber-excluído ou, tendo em consideração a dimensão que o assunto veio a tomar, poderia mesmo ter apontado a uma raposa lá do quintal o que até lhe permitiria alegar legitima defesa, possibilidade relevante dadas as suas preocupações legais. Walter também não sabia da coleira. Cecil tinha uma coleira que permitia que fosse seguido pela Universidade de Oxford. Um leão que é seguido por uma Universidade não é um leão qualquer e não é aconselhável dar largas a uma paixão por caça nele. Acontece, porém, que a coleira só foi descoberta pelos caçadores depois do leão estar morto. Admite-se que quando lhe cortavam a cabeça. Talvez tenha caído nessa altura. O desconhecimento sobre a coleira é plausível dada a enorme quantidade de leões que há por todo o lado. Vá lá um caçador, ou vários, adivinhar que um leão, pertencente a uma reserva, é monitorizado. Walter também desconhecia, certamente, que os leões estão quase extintos. É algo que não é muito conhecido. Se soubesse alegaria a seu favor que aquela gente cria os leões mesmo para serem caçados e não é um amante de caça, estrangeiro, que vai interferir nesse hábitos.
Walter não disse que está arrependido, o que lhe fica muito bem, porque não está. Sabe que tem o direito de comprar emoções que estão à venda e foi o que fez. Julgará, julga-se, que a culpa é de quem vende. Ele limita-se a ter dinheiro para comprar.
Cecil tinha três fêmeas e várias crias. Walter ainda não se sabe. As crias de Cecil vão provavelmente ser mortas pelo novo macho alfa, que a vida na selva também tem a sua quota de selvajaria. Provavelmente não lhes vai cortar a cabeça, nem tirar a pele. O novo macho alfa só tem de garantir que as fêmeas aceitam acasalar com ele e que conseguem, juntos, propagar a espécie com os seus bons genes.
A caça grossa é um clássico, desde o tempo da pré-história, como o demonstram as gravuras rupestres, nas cavernas. Mais recentemente, no início do século XX, tornou-se extremamente glamorosa. Hoje em dia é coisa de alguns reis, Walters e mais alguns amantes endinheirados. Tem como consequência a abdicação, o vexame global e o ainda mais rápido caminho para a extinção de muitos animais.


quarta-feira, 29 de julho de 2015

O cérebro e a nuvem

            

Anda-se a estudar o cérebro, com grandes avanços. Cérebros internacionais reconhecidamente espertos juntam-se em centros de investigação de referência e estudam cérebros, normalmente de ratos, às vezes de homens. Vão chegando a descobertas extraordinárias que ajudam a melhorar a vida dos doentes e a baralhar o conhecimento dos sábios. O funcionamento do cérebro não é linear, a informação não está agrupada em montinhos fofinhos de massa encefálica, unida numa espécie de coral, polvo sem tentáculos, anémona não transparente ou superfície de um planeta distante, talvez o X. Mesmo as imagens, a memória. Uma imagem é composta de elementos que são provenientes de várias áreas, estão armazenados em lobos temporais, parietais e outros tal e tais. Juntando-se tudo sabe-se lá como, mas vai-se sabendo, dá uma cara. Não são álbuns de fotografias, catalogados por datas, famílias, locais, férias, trabalho, etiquetas lógicas para organizar o conhecimento e tomar conta dele. Controlá-lo, porque se está ali é porque ali pertence e não se pensa mais nisso. Pensar cansa um bocadinho, na verdade cansa muito, e arrumar as coisas bem arrumadinhas, diminui a necessidade de pensar sobre elas, sem perceber nada. É assim que se tem vindo a aprender que o cérebro funciona. Caoticamente. Melhor, encontrando ordem e sentido num caos permanente, permanentemente alimentado.

Talvez o mesmo se passe com a nuvem. A nuvem é uma espécie de sítio(s) recente e disseminado que os informáticos e as grandes empresas tecnológicas inventaram e implementaram, de modo a poderem armazenar, tratar e manter disponível a quantidade descomunal de informação que a era digital produz. Serve para recolher a big data. A quantidade de dados é tão grande que não cabe em lado nenhum. É atirada para as caves e os armazéns abandonados ou construídos de propósito e lá fica amontoada, amachucada, amarelecida, ao lado de, à volta e por cima das caixinhas de plásticos transparentes, impecáveis, que por lá estão com os dados estruturados. Tudo é guardado de sempre, para sempre. Guardar sem usar não faz sentido. Para usar é preciso tratar e para tratar vai havendo os algoritmos. Fazem mineração. Consiste em ir buscar ao caos, espalhado por vários sítios físicos, partes de informação que, juntos, vão fazer sentido. Vão, se for caso disso, (re)construir uma imagem.

Não sei porquê, mas encontro semelhanças entre o cérebro e a nuvem.

Este texto foi escrito, parcialmente, em digitalez.   

terça-feira, 28 de julho de 2015

As cabras


Há duas cabras, feias e valiosas. Uma de Rosa Ramalho, em cerâmica, outra de Picasso, em metal. A neta de Rosa, artesã artista que a avó umas vezes dizia ser melhor que ela, outras não prestar para nada, conforme os dias, tem um ar doce, olhos bondosos que riem, mesmo quando diz coisas sérias. Ela explica a polémica, em palavras da escola porque a avó não falava assim. Foi uma grande complicação por causa da cabra. Uma cabra, é uma cabra, é uma cabra, mas aquelas eram duas, parecidas, e uma não devia existir, porque existia a outra. Vieram então perguntar à Rosa quem é que tinha feito a cabra e como a resposta foi “fui eu, quem é que havia de ser?!” a seguir perguntaram porque é que tinha copiado a cabra do Picasso. Assim mesmo, já que a partir do momento que Picasso faz uma cabra, as cabras são dele e não se fala mais nisso. A Rosa, nessa ocasião, respondeu sem palavras de escola e a neta reproduziu tal e qual, porque não havia outra maneira. Algo como “Fui eu, ora essa! Se eu nem conheço o filho da puta desse homem!”. Parece que foi de encomenda com base numa foto e depois voltou às originais mais magrinhas, misturando tudo. Fazia o que lhe apetecia, no barro, quando não fazia farinha no moinho.

A Rosa era uma camponesa do Minho, de Portugal, que via coisas em sonhos que às tantas confundia com a realidade e as corporizava em barro. Picasso também via coisas parecidas, que corporizava essencialmente em quadros, embora tivesse tocado muitas outras zonas da arte, fora a música. Era espanhol, de Málaga, filho de pais e neto de avós vagamente pintores, concretamente ligados às artes. Viveu a maior parte da sua vida em Paris, na altura em que, havendo pouca eletricidade, era a cidade das luzes, iluminada diretamente pela criatividade de quem lá vivia que era toda a gente. Poucas devem ter sido as épocas geograficamente confinadas de tão intensas explosões de criatividade. Todos os artistas, que o eram e podiam, iam para Paris. Não iam a Paris, iam para Paris. Viviam pobres, indigentes, mais ou menos, ou bem. Juntos. A fazer faíscas.

Se Rosa tivesse ido para Paris, não se sabe o que teria acontecido. Pela linguagem, integrava-se, pelos sonhos parece que também. Não seria Picasso, nem Picasso seria Rosa. Se Picasso tivesse nascido moleiro no Minho, não se sabe o que teria acontecido. Podia ter desenhado um touro aos oito anos e rumado depois a França, ou ter ficado a fazer cabras e outras bestas e esculturas menos bestiais, em Portugal.


Certo é que as cabras continuariam cabras e tudo continuaria como era na realidade do que viam e não do que se via. 

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Que mais será vigiado por drones?





Os drones são uma realidade trivial, sujeita à criatividade geral que lhes dá utilizações que os seus criadores não terão imaginado.

Servem, de um modo que já se tornou clássico, para matar, para desativar minas, para gravar concertos de música, para espiar dentro das casas dos vizinhos, para fazer entregas, como as cegonhas.  

Aplicação original dada pelos chineses vem relatada no Observador: os drones são usados para vigiar exames escolares, com a particularidade de detetarem equipamentos digitais, cuja utilização é totalmente proibida nas provas. 

Ficamos aliviados quando pensamos que essa será a única vigilância que ocorrerá ao governo chinês e mesmo a qualquer outro governo ou entidade fazer. Imaginem se resolviam, por exemplo, vigiar manifestações, gravando imagens de quem nelas participa. Just in case.