Há duas cabras, feias e valiosas.
Uma de Rosa Ramalho, em cerâmica, outra de Picasso, em metal. A neta de Rosa,
artesã artista que a avó umas vezes dizia ser melhor que ela, outras não
prestar para nada, conforme os dias, tem um ar doce, olhos bondosos que riem,
mesmo quando diz
coisas sérias. Ela explica a polémica, em palavras da escola porque a avó não
falava assim. Foi uma grande complicação por causa da cabra. Uma cabra, é uma
cabra, é uma cabra, mas aquelas eram duas, parecidas, e uma não devia existir,
porque existia a outra. Vieram então perguntar à Rosa quem é que tinha feito a
cabra e como a resposta foi “fui eu, quem é que havia de ser?!” a seguir
perguntaram porque é que tinha copiado a cabra do Picasso. Assim mesmo, já que
a partir do momento que Picasso faz uma cabra, as cabras são dele e não se fala
mais nisso. A Rosa, nessa ocasião, respondeu sem palavras de escola e a neta
reproduziu tal e qual, porque não havia outra maneira. Algo como “Fui eu, ora
essa! Se eu nem conheço o filho da puta desse homem!”. Parece que foi de
encomenda com base numa foto e depois voltou às originais mais magrinhas,
misturando tudo. Fazia o que lhe apetecia, no barro, quando não fazia farinha
no moinho.
A Rosa era uma camponesa do
Minho, de Portugal, que via coisas em sonhos que às tantas confundia com a
realidade e as corporizava em barro. Picasso também via coisas parecidas, que
corporizava essencialmente em quadros, embora tivesse tocado muitas outras
zonas da arte, fora a música. Era espanhol, de Málaga, filho de pais e neto de
avós vagamente pintores, concretamente ligados às artes. Viveu a maior parte da
sua vida em Paris, na altura em que, havendo pouca eletricidade, era a cidade
das luzes, iluminada diretamente pela criatividade de quem lá vivia que era
toda a gente. Poucas devem ter sido as épocas geograficamente confinadas de tão
intensas explosões de criatividade. Todos os artistas, que o eram e podiam, iam
para Paris. Não iam a Paris, iam para Paris. Viviam pobres, indigentes, mais ou
menos, ou bem. Juntos. A fazer faíscas.
Se Rosa tivesse ido para Paris,
não se sabe o que teria acontecido. Pela linguagem, integrava-se, pelos sonhos
parece que também. Não seria Picasso, nem Picasso seria Rosa. Se Picasso
tivesse nascido moleiro no Minho, não se sabe o que teria acontecido. Podia ter
desenhado um touro aos oito anos e rumado depois a França, ou ter ficado a
fazer cabras e outras bestas e esculturas menos bestiais, em Portugal.
Certo é que as cabras
continuariam cabras e tudo continuaria como era na realidade do que viam e não
do que se via.
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