Cecil não era uma pessoa, só
tinha nome de americano, embora fosse natural de África e residente no
Zimbabué. Walter também tem nome americano e dizem que é um dentista. Não se
especifica se é ou não pessoa, mas sendo dentista, poderá ser um pressuposto.
Cecil era conhecido, famoso e admirado em vida, Walter é conhecido, famoso e
odiado na morte de Cecil. Tudo devido às redes sociais.
Walter veio agora fazer um comunicado. Por boas razões. As contas online da sua clínica de
dentista no Twitter e no Facebook terão sido invadidas por insultos, quando foi divulgada a sua participação na carnificina. Comentários
desagradáveis e ofensivos são piores que cáries em dentes da frente do próprio estomatologista e não contribuem para a saúde do negócio em geral e de uma clínica em particular.
Veio dar explicações, na medida
do possível explicativas, sobre o inexplicável. É inocente. Por várias razões.
A primeira é que confiou nos mauzões lá de África que lhe disseram que era tudo
muito legal e pagou uns trocos, cerca de 50.000 euros, mas em dólares, a esses
mesmos mauzões, acreditando que eram bons. Não disse, mas provavelmente irá
dizer, mais dia menos dia, que o fez com o principal propósito de ajudar as
vidinhas desses cidadãos pobres e contribuir para o PIB, bem como para a
economia, a demografia, a geografia, a cultura e a preservação da vida selvagem
de um pais necessitado. A atestar a legalidade de tudo e a seriedade da
operação está o facto de terem atraído o leão para fora da reserva, criando um
rasto que sabiam que o animal seguiria. É má vontade considerar que não se está
perante um escrupuloso cumprimento das leis. É proibido caçar dentro das
reservas. Só foi aborrecido, porque demorou imenso tempo, 40 horas, quando se o
leão tivesse colaborado, ou a legislação não empatasse, tudo se despachava
muito mais depressa. A legalidade tem destas coisas, cria entraves que podem
levar o seu tempo a ser ultrapassados.
Outra razão é que não sabia que o
leão era conhecido. Muito menos, que era conhecido no ciberespaço. Esta, sim, é
uma razão de peso. Se Walter sonhasse a chatice que iria ter, teria apontado a
um leão outline, ciber-excluído ou,
tendo em consideração a dimensão que o assunto veio a tomar, poderia mesmo ter
apontado a uma raposa lá do quintal o que até lhe permitiria alegar legitima
defesa, possibilidade relevante dadas as suas preocupações legais. Walter
também não sabia da coleira. Cecil tinha uma coleira que permitia que fosse
seguido pela Universidade de Oxford. Um leão que é seguido por uma Universidade
não é um leão qualquer e não é aconselhável dar largas a uma paixão por caça
nele. Acontece, porém, que a coleira só foi descoberta pelos caçadores depois
do leão estar morto. Admite-se que quando lhe cortavam a cabeça. Talvez tenha
caído nessa altura. O desconhecimento sobre a coleira é plausível dada a enorme
quantidade de leões que há por todo o lado. Vá lá um caçador, ou vários, adivinhar
que um leão, pertencente a uma reserva, é monitorizado. Walter também
desconhecia, certamente, que os leões estão quase extintos. É algo que não é
muito conhecido. Se soubesse alegaria a seu favor que aquela gente cria os
leões mesmo para serem caçados e não é um amante de caça, estrangeiro, que vai
interferir nesse hábitos.
Walter não disse que está
arrependido, o que lhe fica muito bem, porque não está. Sabe que tem o direito
de comprar emoções que estão à venda e foi o que fez. Julgará, julga-se, que a
culpa é de quem vende. Ele limita-se a ter dinheiro para comprar.
Cecil tinha três fêmeas e várias
crias. Walter ainda não se sabe. As crias de Cecil vão provavelmente ser mortas
pelo novo macho alfa, que a vida na selva também tem a sua quota de selvajaria.
Provavelmente não lhes vai cortar a cabeça, nem tirar a pele. O novo macho alfa
só tem de garantir que as fêmeas aceitam acasalar com ele e que conseguem,
juntos, propagar a espécie com os seus bons genes.
A caça grossa é um clássico,
desde o tempo da pré-história, como o demonstram as gravuras rupestres, nas
cavernas. Mais recentemente, no início do século XX, tornou-se extremamente
glamorosa. Hoje em dia é coisa de alguns reis, Walters e mais alguns amantes endinheirados. Tem como consequência a abdicação, o vexame global e o ainda
mais rápido caminho para a extinção de muitos animais.